Reflexões sobre a governança dos modelos do setor elétrico e seus dados

Jan/2022, Alexandre Street.

Apesar de achar que o passo mais relevante para resolver grande parte dos nossos problemas seja ir para um desenho de mercado, existe um espaço tremendo para melhorarmos o que fazemos hoje em dia em termos de governança dos modelos e dos dados do setor elétrico.

A maior parte das distorções que observamos nas variáveis do setor hoje em dia — do preço que (extremamente volátil e que não captura sinais importantes com a antecedência esperada) à inconsistente utilização dos recursos de geração (evidenciadas, pelos frequentes despachos fora da ordem de mérito) — é amplificada ou parcialmente originada pelo viés otimista que o Newave (NW) + Decomp e seus dados levam para o modelo de curto prazo (DESSEM).

Ao simplificar a visão de futuro dentro do NW, o valor da água - decorrente da flexibilidade futura que as hidrelétricas podem aportar ao sistema (realizando todos as compensações de curto prazo, deslocando geração térmica cara e abrindo espaço para as solares e eólicas) ao longo das 8760 horas de todo o ano seguinte - não chegam para o DESSEM como deveriam. Portanto, o DESSEM passa então a programar as hidros e gastar a água mesmo que esteja clara a necessidade de economia deste recurso. O viés otimista na visão de futuro sobre a disponibilidade dos recursos hídricos invariavelmente nos leva a estados arriscados e ineficientes de armazenamento.

Fortes evidências práticas desse efeito se manifestam em situações pré geração fora de ordem de mérito (GFOM). Nestes momentos (lembrar do segundo semestre de 2021 e de todos os eventos semelhantes desde 2013), fica claro que uma visão mais acurada sobre as vazões futuras e sobre as restrições e incertezas de curto prazo do sistema deveriam levar a um despacho mais conservador. Neste cenário, um despacho mais flat a gás, com o objetivo de evitar os custos exorbitantes de acionamento de todas as térmicas, algumas custando mais de 1000 R$/MWh, poderia até mesmo aparecer como parte da solução ótima de uma nova e mais acurada ordem de mérito.

Perceba que, neste ponto, diversas frentes que buscam justificar, e em algumas instâncias até impor, despachos firmes à gás poderiam encontrar eco na própria natureza do potencial benefício que essas térmicas poderiam aportar “por dentro” da ordem de mérito. Não obstante, com a cadeia de modelos atualmente em uso, não somos capazes de medir tal benefício e nem de testar essa hipótese. Isso porque os modelos de longo prazo, NW e Decomp 1) não conseguem capturar muitos dos benefícios que as hidrelétricas aportam ao resolver as inflexibilidades das demais fontes na escala intradiária e 2) recebem projeções irrealistas sobre as vazões futuras. Assim, o valor futuro da água calculado pelo NW e Decomp fica, em geral, mais baixo do que deveria. Neste cenário, as termelétricas mais baratas, que poderiam ser acionadas pelo DESSEM com antecedência para garantirem níveis de armazenamento compatíveis com todos os usos da água (inclusive os de curto prazo), não são acionadas. E como consequência, o pulmão hídrico, que nos confere a flexibilidade para endereçar toda a intermitência das renováveis e geração distribuída, vai sendo pouco a pouco comprometido.

Muito do que se espera que ocorra, como despachos mais constantes a gás, enchimento de reservatórios para que estes operem em regiões de maior eficiência, e maior valoração de hidrelétricas, que trazem importantes flexibilidades para contornar restrições elétricas e a intermitência das renováveis, deveria acontecer “por dentro” da ordem de mérito se os modelos de longo prazo fossem mais aderentes à realidade operativa implementada na prática.

Dentro deste contexto, vale lembrar que o objetivo do NW e do Decomp é simular o custo do despacho que seria implementado no futuro sob diversos possíveis cenários de vazão (e de carga, expansão da geração e transmissão - incertezas hoje não consideradas), para informar ao DESSEM o benefício futuro de não utilizar água hoje e guardar para amanhã. Esse benefício, ou custo de oportunidade, ganha o nome no setor de valor da água. Se este custo de oportunidade for artificialmente reduzido por um viés otimista sobre as vazões e sobre as restrições operativas, fica claro que o DESSEM tenderá a não guardar a água que guardaria se o valor da água fosse não enviesado. E em situações de escassez, esse efeito pode comprometer a segurança do sistema, gerar altos custos operativos e grandes picos de preços. Como esse raciocínio é concebido sobre uma lógica direta (pode ser estabelecido sobre causa e efeito direto - relação de primeira ordem) e como são vastos os eventos desde 2013 que se encaixam nela (evidências práticas), qualquer argumentação contra essa direção exige uma ginástica intelectual e argumentos de relação de segunda ordem, em geral, com menor amplitude de efeito. Portanto, parece bastante claro que tal argumento mereça ser investigado pelas entidades competentes com o cuidado necessário para sua correta estimação.

Contudo, temos pouco ou nenhum estudo baseado em dados reais da operação que demonstrem a aderência entre as projeções do NW para alguns meses, até um ano à frente, e o que foi feito de fato. E isso é de grande importância. Esse estudo não é simples e, por esse motivo não é feito. Entretanto, não é, em absolutamente, impossível de ser realizado, e é o papel da entidade que escolhe o modelo operativo realizar esse monitoramento para prestar contas com a sociedade sobre as metas que estão sendo traçadas e o que se tem de fato realizado. Vale ressaltar que o que o NW produz é um planejamento da operação e do uso dos recursos hídricos. Esse planejamento tem impacto direto na operação de curto prazo. Portanto, as boas práticas de gestão corporativa se aplicam neste caso. Devemos monitorar o cumprimento das metas e planos para que possamos corrigir usos indevidos dos recursos e operar melhor. Tampouco monitoramos a resposta dos modelos em horizontes mais longos, de alguns meses a dois anos, sob dados observados.

No vídeo abaixo eu e um aluno de doutorado (Joaquim) mostramos como esse problema de simplificações afeta o preço e o esvaziamento sistemático dos reservatórios apenas por ignorarmos as restrições elétricas no cálculo do valor da água dentro do NW. Minha apresentação coloca os fundamentos teóricos para entender esse quantificar esse problema (t=00:10:40) e depois o Joaquim mostra um estudo de caso com dados reais do sistema elétrico brasileiro (t=1:00:40). Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=rX94PCS9eF8&ab_channel=P%26DNorus

Para complementar o ponto, nos gráficos abaixo extraídos da apresentação, podemos ver o efeito de se planejar sem a rede e operar com a rede (linha vermelha). Isso é o que fazemos hoje. O PLD (marginal cost) fica muito mais volátil e alto, enquanto que os reservatórios ficam cada vez mais vazios. O interessante é que se consideramos no modelo de longo prazo a rede, o PLD e o reservatório aprendem sobre a realidade e a otimização é capaz de levá-los a patamares seguros. Mas isso é apenas para uma das simplificações.

 

Figura 1 - Gráfico extraído da apresentação do Joaquim Garcia realizada no Workshop "Computing Efficient Prices" 

Em 2021, o tema foi aplicado no projeto da tese do Arthur Brigatto orientada por mim, onde analisamos diversos outros efeitos (ver apresentação sobre o projeto da tese). Neste contexto mais amplo, podemos entender que o mesmo problema pode ocorrer em função do viés otimista que o modelo de vazões traz. É importante mencionar que, para a aplicação em questão, o erro e viés dos modelos de vazão devem ser controlados para diversos passos à frente, pois o NW consome 5 anos de previsão e, com base neles, calcula o valor da água. Assim, em um estudo preliminar, calculamos a média dos erros de previsão k passos à frente (previsão realidade), para k = 1 a 24 meses, principais períodos que afetam o cálculo do valor da água no NW. Conseguimos constatar através de um estudo de previsão em horizonte rolante que, em média, existe um viés otimista de +/- 15% no sudeste para 12 passos à frente e um viés ainda maior no Nordeste. Isso significa que ao longo das rodadas do NW, desde 2011 (inicio do horizonte rolante) até o início de 2022 (fim do estudo), este projetou, em média, um aporte muito maior de água para os anos futuros do que chegou de fato. Isso agrava ainda mais o viés otimista no valor da água, que pode se somar ao viés das diversas outras simplificações, como a da rede, por exemplo. Veja gráficos abaixo.

Abaixo: Em linhas contínuas o histórico das ENAs em uma dada configuração fixa (julho 2022). Em pontilhado as projeções 12 passos à frente a partir de cada data (médias das 2000 séries do deck de cada mês desde 2011 até 2022).

Abaixo: O viés de previsão (média do erro entre o que se projetou e o que foi realizado) para cada passo à frente (k) dentre todos os decks mensais desde 2011 até 2022.

Essas muitas aproximações otimistas, tem o potencial de gerar um valor da água sistematicamente menor do que o que deveria ser. E frente à complexidade das restrições caracterizadas no modelo de curto prazo, DESSEM, este tenderá a dar preferência a utilizar a água hoje (pois o sinal que o modelo de longo prazo dá é que o futuro será muito mais tranquilo), mesmo que esteja claro para o operador que isso seja errado. É justamente isso que gera os despachos fora de ordem de mérito, e diversos outros problemas em importantes variáveis, como garantias físicas, GSF, PLD (extremamente voláteis - veja vídeo da apresentação que mencionei acima) e a não utilização dos demais recursos de geração da maneira correta.

Destaco os seguintes artigos para uma documentação sobre o tema:

1) Artigo escrito ao valor econômico sobre este problema e apresentando uma possível melhoria nos incentivos para as entidades do setor criarem um governança mais diligente dos modelos e seus dados: https://www.dropbox.com/s/8smomv77epw8zfq/A%20velha%20Inconsistencia%20e%20a%20repetida%20crise%202021%20Valor.pdf?dl=0

2) a contribuição realizada à chamada pública 121 do MME https://www.dropbox.com/s/gtugvkgf8a0tqgg/Contribuicao%20Street%20CP%20CPAMP%202022-enviada.pdf?dl=0

3)  em uma entrevista ao canal energia, apresento minhas opiniões pessoais sobre os problemas que enxergo existir na governança dos modelos: https://www.dropbox.com/s/7uxzasoxbmomxgt/Cepel%20come%C3%A7a%20a%20trilhar%20seu%20futuro_CanalEnergia%20-%20corrigido.pdf?dl=0

4) uma recente publicação no newsletter da sociedade de programação estocástica, onde levantamos esse tema em meio a grandes nomes e as discussões renderam um convite para escrever essa mensagem na newsletter da sociedade. Pode ser acessada no link a seguir (página 14): https://stoprog.org/sites/default/files/sps_newsletter_2.pdf

5) Artigo do SNPTEE sobre estudos dos efeitos da transmissão nos preços e geração: https://www.dropbox.com/s/ah8s87rb1uzrkan/SNPTEE2017_Inconsistencia%20e%20PDDE%20com%20n-k%20-%20v20.pdf?dl=0

6) Compilado de artigos sobre o setor: http://www.lamps.ind.puc-rio.br/publicacao/compilacao-artigos-de-opiniao/

 

Sugestões:

mudança da maneira como os modelos e dados são geridos. Retirada da obrigatoriedade do ONS em utilizar o Newave, Decomp e Dessem. Deixar o ONS ser livre para escolher seu melhor modelo. Só assim poderemos cobrar o ONS por performance. Criar metas claras de performance, consistência e agilidade na resposta à crises para o ONS. Verificar e cobrar como qualquer empresa é cobrada.

Reflexão Sobre o papel do ONS e CPAMP:

É importante criar um incentivo para uma governança dos modelos e dados que imponha agilidade e acurácia dos modelos e suas previsões. A minha sugestão acima cria 1) uma pressão competitiva saudável sobre o fornecedor, 2) permite que o ONS utilize o melhor modelo para cumprir suas metas, e 3) termina com a fantasia de que vamos conseguir consertar os modelos dentro do atual arranjo de incentivos nos quais as entidades estão envolvidas. Digo fantasia pois não há qualquer incentivo para a agilidade e acurácia atualmente e continuar no desenho atual não faz com que a gente tenha hoje, ou na janela dos próximos anos, o melhor modelo para operar o sistema. E o custo disso, muito provavelmente, será maior do que o do GFOM, dado o conjunto de variáveis que são afetadas pelas decisões operativas e preços. Além disso, a CPAMP tem desempenhado o papel oficial de monitorar e definir a agenda dos aprimoramentos dos modelos. Devido ao importante papel que a governança (monitoramento, testes e mudanças) dos modelos e seus dados desempenha na mitigação dos efeitos do distanciamento entre modelos e realidade, amplamente discutidos nesse texto, não parece importante que a CPAMP tenha um conselho formado por profissionais do setor e, principalmente, da academia, que sejam isentos e comprovadamente conhecedores dos temas técnicos e regulatórios envolvidos?