Position Paper: Modernização regulatória para sustentabilidade do setor elétrico brasileiro frente a uma matriz de geração com alta inserção de fontes renováveis não controláveis - 2024
Alexandre Street
Departamento de Engenharia Elétrica, PUC-Rio
Fundador LAMPS PUC-Rio
Rio de Janeiro, 20 de agosto de 2024
Atualizado: 08/03/2025 com novas referências de artigos recentes.
Revisão: Luiz Augusto Barroso, PSR Consultoria
Objetivo: O objetivo deste documento é fornecer subsídios ao grupo de trabalho da Academia Nacional de Engenharia (ANE) para a elaboração de seu position paper sobre as necessidades de modernização regulatória no setor elétrico brasileiro. Neste objetivo, o autor torna todo o conteúdo deste documento livre para a utilização pela ANE para este fim, reservando-se também o direito de utilizá-lo livremente.
Resumo: O setor elétrico brasileiro, outrora robusto e predominantemente sustentado por uma matriz hidrotérmica, enfrenta desafios que evidenciam o esgotamento do marco regulatório vigente, estabelecido em 2004. As mudanças tecnológicas e comportamentais, sobretudo a crescente participação de fontes renováveis não controláveis, como a energia eólica e solar, exigem uma revisão urgente no planejamento, operação e precificação do sistema elétrico. A falta de adaptação às novas realidades tem gerado distorções no mercado, onde subsídios excessivos prejudicam a competitividade e elevam as tarifas aos consumidores. Este documento (position paper) defende uma reestruturação profunda do setor, com foco na criação de um moderno ambiente regulatório que promova a eficiência, sustentabilidade e justiça econômica. A transição para um setor elétrico modernizado é imperativa para evitar uma crise sistêmica maior que comprometa a sustentabilidade comercial e institucional do país, impactando severamente a economia e os consumidores finais. Em linhas gerais, propõe-se, de forma não exaustiva: i) uma revisão ampla sobre a governança dos modelos computacionais e seus dados (responsáveis por definir a operação e o preço da energia); ii) uma revisão do desenho do mercado que reconheçam a nova realidade operativa, seus custos de oportunidade e o balanço entre oferta e demanda dos diferentes atributos/serviços operativos (energia, flexibilidade e serviços ancillares); e iii) a implementação de um novo pacto setorial que envolva a liberdade de escolha de todos os consumidores, com a eliminação gradual de subsídios para criar um ambiente de mercado competitivo, eficiente e meritocrático.
Preâmbulo
O setor elétrico brasileiro, tradicionalmente robusto e sustentado por uma matriz energética predominantemente hidrotérmica, enfrenta, já há alguns bons anos, desafios significativos que evidenciam o esgotamento do atual marco regulatório. As bases do sistema regulatório e desenho de mercado vigentes datam de 2004. Contudo, os avanços tecnológicos e comportamentais alteraram muito as hipóteses sobre as quais o atual marco regulatório foi construído, criando grandes distorções e desincentivos.
Pelo lado da oferta, o crescimento acelerado de novas fontes de produção não controláveis, como a eólica e solar (centralizada ou distribuída), altera significativamente a forma como o sistema deve ser planejado, operado e ter os seus recursos precificados. Pelo lado da demanda, a sofisticação da comunicação trouxe o setor elétrico para perto do consumidor; a tecnologia permitiu o consumidor entender mais sobre sua conta de luz e expressar, até certo ponto, suas preferências de consumo. Hoje, alguns consumidores que são elegíveis ao mercado livre podem escolher seu fornecedor de energia, suas condições de pagamento, e inclusive investir em geração. Os demais, onde incluem-se os residenciais, podem comprar energia ou investir em geração distribuída (GD), o que traz um “sabor" de mercado livre aos consumidores residenciais que ainda permanecem regulatoriamente presos no ambiente cativo.
No entanto, estas fortes mudanças vêm ocorrendo sobre bases regulatórias não sustentáveis do ponto de vista econômico. Por exemplo, os fortes subsídios distorcem a competitividade dos geradores. Além disso, as práticas de planejamento da expansão e operação, bem como os instrumentos e mecanismos de mercado do passado vêm se mostrando insuficientes para entregar o melhor equilíbrio entre segurança e custo para o consumidor final. Os resultados destas distorções são: i) desequilíbrio na competição entre as fontes de energia, ii) perda da capacidade de autorregulação promovida por preços aderentes à realidade operativa, iii) realização de investimentos desnecessários e a não realização de investimentos importantes para o sistema e iv) uma elevada tarifa final para o consumidor.
Nesse contexto, a reestruturação e modernização do setor elétrico são essenciais para garantir um sistema equilibrado, eficiente e sustentável de forma justa e meritocrática. A alternativa será um setor evoluindo para uma grande dificuldade de sustentabilidade comercial e institucional, que, cedo ou tarde, culminará em uma crise sistêmica, com impactos físicos e financeiros aos consumidores e à economia de todo o país. Dessa forma, nas próximas seções, este texto elenca, de forma não exaustiva, algumas frentes de modernização prioritárias do marco regulatório.
1. Sistema de preços, competição e sustentabilidade no curto e longo prazo
A integração de fontes renováveis não controláveis, como as eólicas e solares, aumenta a demanda por serviços operativos específicos, como a flexibilidade na variação da geração ao longo do dia e provisão de reservas operativas para lidar com a incerteza do vento e sol. É fundamental que o marco regulatório precifique a necessidade destes atributos, remunere adequadamente quem os fornece e cobre, de maneira justa os agentes que causam as necessidades destes serviços. Nesse sentido, o aperfeiçoamento dos modelos computacionais é fundamental.
É importante ressaltar que os modelos computacionais, utilizados no planejamento, operação e precificação dos recursos do setor elétrico influenciam fortemente na maior parte das decisões técnicas e financeiras dos agentes. Esses modelos são responsáveis por determinar desde a produção e remuneração de cada fonte, definindo assim o retorno sobre os investimentos, até a segurança do suprimento e o preço que todos os consumidores pagam. Desta forma, quando esses modelos se afastam da realidade (perdem acurácia, seja por dados ou modelos imprecisos), param de reconhecer e valorizar adequadamente os serviços prestados pelas diferentes fontes de geração. Como consequência, criam-se enormes lacunas entre os serviços prestados e os preços que os remuneram, resultando em grandes desincentivos e riscos para todos os agentes. Para garantir que o consumidor pague um preço justo pela energia e que o sistema opere de forma confiável, é crucial que esses modelos sejam continuamente monitorados e adaptados à realidade dinâmica do setor. Os modelos computacionais que geram os preços de curto prazo da energia elétrica, o PLD (preço de liquidação de diferenças), formam o sistema de clearing do mercado de eletricidade. E isso é assim no mundo todo. A diferença de um país para o outro está apenas no grau de realismo que esses modelos recebem sobre o sistema, na frequência em que esses modelos são utilizados para trazer sinais de preços mais granulares e próximos à operação e na forma como os dados dos agentes é recebida e considerada. E isso faz toda a diferença.
Do ponto de vista do planejador do sistema elétrico, a expansão da rede depende fortemente da expansão que da geração que é guiada pelo mercado. Como os tempos envolvidos na expansão da transmissão (4 a 10 anos, dependendo da extensão e tecnologia) são atualmente superiores ao tempo da expansão da geração (1 a 5 anos, dependendo do tipo de fonte), a expansão da transmissão precisa ser proativa e robusta aos possíveis cenários de expansão da geração. Nesse âmbito, existe amplo benchmark e literatura sobre o tema (ver [Moreira 2017] e [Velloso 2020] para uma discussão mais técnica). O modelo atual é reativo e não proativo em induzir os tipos de fonte para os locais mais apropriados. Falhamos tanto em dar sinais locacionais nas tarifas como em trazer incentivos concretos para a expansão da geração através da facilitação de acesso nas regiões mais relevantes para o sistema. Assim, uma maior integração entre os modelos de planejamento da expansão (investimento e acesso) da geração e transmissão com os incentivos de mercado tornam-se uma importante fonte de aprimoramento setorial.
Na camada financeira, a ausência de mercados de tempor real, curto, médio e longo prazo corretamente desenhados para precificar e remunerar os principais atributos das fontes – (i) capacidade e energia, (ii) flexibilidade, (iii) serviços ancillares e (iv) níveis de emissões – cria um enorme gap entre receitas e despesas; efeito conhecido como “missing money” (dinheiro perdido). Esse fenômeno, que se caracteriza pela incapacidade de recuperação dos custos de produção dos geradores através da receita obtida pela prestação do serviço, é um dos fatores responsáveis por não vermos investimentos em equipamentos de armazenamento e não explorarmos amplamente a flexibilidade existente na base dos consumidores na busca pelo contínuo e delicado equilíbrio entre geração e consumo. Este cenário enfraquece a atratividade do setor, cria forte instabilidade regulatória e desencadeia um ciclo de pleitos regulatórios que só deterioram a confiança nas instituições setoriais. O resultado é uma contínua e crescente busca dos agentes por novos subsídios em uma espiral insustentável que precisa ser imediatamente interrompida, pois sua consequência final é e sempre será o aumento do custo da energia para o consumidor final.
Para romper essa espiral, precisamos de novas alavancas operativas e regulatórias, que se materializam por 1) fortalecer as instituições setoriais em suas funções, quadros técnicos, mas também responsabilidades (accountability), 2) aumentar a aderência dos modelos que precificam a energia à realidade, 3) precificar corretamente os serviços e atributos que o sistema necessita, 4) criar instrumentos apropriados para sinalizar e suportar investimentos que considerem os atributos das fontes e dos consumidores de forma agnóstica à tecnologia (incentivo à inovação) e, por fim, 5) criar um ambiente de mercado justo, onde as regras do jogo sejam claras e a competição isonômica.
Em um contexto onde a governança dos softwares que calculam os preços e a estratégia de armazenamento, baseada em cálculos, visões de futuro e perfis de aversão ao risco centralizadamente definidos, torna-se muito sensível e de difícil consenso, a única alternativa passa a ser a transição para um esquema de mercado por ofertas. Esse mercado já é uma realidade no Brasil, pois tanto térmicas quanto consumidores já podem realizar ofertas no estágio pós-DESSEM para cobrir as rampas de tomada de carga entre 16 e 20 horas. Nesse modelo, os agentes passam a ser responsáveis por definir suas próprias visões de futuro, perfis de risco e disponibilidades de produção, entregando essas informações ao operador. Apesar de esse esquema ser frequentemente encarado com certo receio devido ao potencial exercício de poder de mercado, diversos estudos mostram que altos níveis de contratação, como os encontrados no Brasil, são mais do que suficientes para mitigar esse risco [Joaquim 2025]. Além disso, existem diversos esquemas de monitoramento de mercado já amplamente discutidos e testados no mundo que tornam essa escolha algo bastante natual.
Não obstante, independente de como a oferta das hidrelétricas será realizada, de forma centralizada ou descentralizada por ofertas, os mecanismos de contabilização, softwares, preços e governança de dados e modelos precisa ser aperfeiçoada. Somente assim teremos um sistema capaz de incentivar ou frear os investimentos em renováveis de maneira natural, atraindo ativos e serviços de flexibilidade na medida certa, sem criarmos mais subsídios. Nos itens a seguir, essas iniciativas são detalhadas:
1.a) Fortalecimento das instituições setoriais (ONS, CCEE, EPE e ANEEL):
- Definir posicionamento estratégico governamental de fortalecimento, isenção e não interferência nas instituições setoriais.
- Criar programa de renovação, ampliação e melhoria do quadro técnico das instituições setoriais através de programas de formação acadêmica em rede.
- Criação de áreas de pesquisa com atuação em rede entre todas as instituições. As áreas de pesquisa formam os vasos comunicantes entre as instituições, produzindo alinhamento de longo prazo.
- Criar programa de alocação de verbas de P&D para empresas do setor financiarem os programas de formação e pesquisas das instituições. Essas verbas teriam automática aprovação e ficariam isentas de multas ou glosas. As empresas poderiam escolher grandes temas que gostaria de financiar, alocando até 50% da verba direcionada ao programa, respeitados limites de desequilíbrios entre as áreas. As entidades setoriais prestariam contas com a organização de seminários anuais de pesquisas que devem ser aplicadas estritamente em temas relevantes para o setor.
1.b) Governança dos modelos computacionais e dados:
- Garantir a aderência dos dados de entrada e saídas dos modelos computacionais de planejamento da operação com a realidade.
- Criar novos processos de monitoramento para detectar desvios atípicos e vieses com antecedência.
- Criação de dashboards públicos com métricas e indicadores objetivos e transparentes que meçam a discrepância entre previsão e o realizado, nos diversos horizontes relevantes para as etapas de planejamento.
- Estabelecer um conselho consultivo de especialistas (profissionais nacionais e internacionais de comprovado conhecimento nos temas de modelagem computacional e desenho de mercado) que sejam isentos e grupos de trabalho com técnicos de grande renome para a discussão sobre a governança e temas técnicos relativos aos dados, modelos e suas aplicações.
- Promover fóruns abertos de discussão sobre os temas técnicos e regulatórios relacionados.
- Criar bases de dados completas e atualizadas de testes de modelos que permitam que pesquisadores e agentes possam reproduzir e avaliar as metodologias, dados e modelos.
- Criar processo de monitoramento constante de modelos alternativos com benchmarks e fóruns acadêmicos.
- Criação de um modelo espelho em código aberto para benchmark e formato de apresentação de propostas de novos desenvolvimentos.
- Liberdade e transparência no processo de escolha da melhor cadeia de modelos para as entidades ONS, CCEE e EPE.
- Coerência entre modelos, dados e critérios através das funções de planejamento da expansão, planejamento da operação (nas suas múltiplas etapas), operação de tempo real e precificação.
1.c) Revisão da precificação de curto prazo:
- Definir os principais serviços prestados pela rede e seus horizontes para testar se o sistema de preços identifica e remunera ou cobra os agentes corretamente por cada um deles. Por exemplo: (i) energia, (ii) flexibilidade e (iii) serviços ancilares em mercados horários para cada hora do dia seguinte e mercados de curto prazo (até o tempo real em granularidade mais fina -- 15 em 15 min, por exemplo -- ver [Ribeiro 2023]).
- Definir sistemas de preços isonômicos e agnósticos à tecnologia que permitam identificar, objetivamente, como cada fonte deve ser remunerada ou cobrada pelos serviços prestados ou consumidos. Ver exemplos sobre mercado de balanços de tempo real em [Apresentação ITAU BBA 2025], slides 17 e 18 e [Street Março 2025].
- Expandir os sistemas de precificação para os serviços de flexibilidade e serviços ancilares. Devido à forte inter-relação entre os serviços ancillares, de flexibilidade e energia e complexa interação com a rede, os principais benchmarks mundiais (ver [Ribeiro 2023]) apontam para a necessidade da cootimização desses serviços no mercado de dia seguinte e curtíssimo prazo (tempo real). Já o atributo relativo aos níveis de emissão, cada agente pode internalizar seus custos de oportunidade em mercados de carbono (ver [Muñoz 2021] uma discussão sobre o mercado Chileno).
- Internalizar nos modelos de precificação da energia (do planejamento de médio prazo à programação diária) as ações operativas realizadas pelo operador. Criar um plano de convergência entre ações ad hoc e planejamento otimizado. Esse passo permite que soluções subótimas realizadas após o clearing do dia seguinte sejam internalizadas e cootimizadas com os principais recursos sistêmicos. Dessa forma, os preços passam a refletir de forma mais acurada o real custo marginal da operação para todos os agentes. É importante ressaltar que sempre serão necessárias algumas simplificações. Mas essas podem ser realizadas de maneira otimista ou conservadoras. É importante tentder para o conservadorismos, pois o custo de déficit é, em geral, mais alto do que o custo da sobra.
- Avançar na sistematização dos mercados intradiários, hoje em dia formalizados de forma ad hoc na etapa pós-DESSEM, objetivando a criação de preços de tempo real e o uso de dupla contabilização (day ahead e real time) para permitir que as fontes sejam remuneradas de maneira economicamente justa em função.
- Acelerar e avançar com os programas de resposta da demanda e utilização de agregação de recursos de flexibilidade distribuídos seguindo benchmarks internacionais de sucesso, as boas práticas da literatura acadêmica e internalizando nos preços de mercado.
1.d) Integração entre o planejamento da expansão da geração e transmissão (G&T) com os incentivos mercado:
- Revisão dos modelos de planejamento G&T para considerar as novas incertezas operativas e climáticas, a política operativa e seus critérios de segurança, os múltiplos atributos das fontes, diferentes cenários e tendências de mercado, segurança em casos de eventos extremos e a realidade do mercado que irá sustentar a expansão.
- Criar pontes e conexões via incentivos entre os planos de expansão G&T e os desenhos dos leilões.
- Rever os critérios de alocação tarifária de forma a promover uma maior conexão entre a expansão da transmissão e os incentivos à geração.
- Internalizar custos de oportunidade dos diversos atributos dos agentes (fontes geradoras, híbridas ou não, consumidores e centrais de armazenamento) e da rede identificados por modelos de coordenação da expansão e operação centralizada em leilões dos diversos mecanismos de remuneração de longo prazo.
1.e) Separação do produto confiabilidade (lastro) e mecanismos para a garantia da sustentabilidade do suprimento de longo prazo:
- Permitir que o planejador e operador tenham flexibilidade e alavancas para garantir que todos os atributos necessários para o correto cumprimento dos critérios de suprimento estejam disponíveis. A contratação pode se dar de forma específica ou conjunta através de mecanismos de licitação de contratos de médio e longo prazo.
- Criar indicadores transparentes e acurados para quantificar, de forma realista, a oferta de cada fonte e a demanda sistêmica por atributo (energia, serviços ancillares, flexibilidade, metas climáticas, etc.).
- Tornar público a situação sistêmica nas suas diversas dimensões (custo, segurança, flexibilidade, emissões, etc.) através de dashboards com metodologias e dados abertos que permitam a reprodutibilidade dos cálculos.
- Criar grupo de estudo e monitoramento oficial encarregado de definir e discutir as metodologias, processos e métricas/indicadores de avaliação da situação sistêmica que deverão ser disponibilizadas de maneira pública e utilizadas pelas entidades setoriais. Buscar composição dentro das entidades setoriais (ONS, EPE, CCEE e MME), da academia e contando com a participação de consultores internacionais. Garantir liderança isenta, não associada às entidades e associações.
- Recalcular periodicamente os indicadores de confiabilidade de acordo com o prazo de validade das hipóteses utilizadas nos seus cálculos. O critério de cálculo deve ser transparente e ter sua aderência à realidade operativa constantemente monitorada. [Por exemplo, o lastro de energia não pode ter validade superior às hipóteses de crescimento da carga, expansão da oferta, e parâmetros de aversão a risco.]
- Avaliar a criação de mecanismos de contratação de médio e longo prazo para os diversos atributos relevantes ao sistema de forma agnóstica à fonte, considerando, além das fontes convencionais, a resposta da demanda, baterias e agregação de recursos distribuídos (geradores virtuais) e demais recursos qualificáveis a cada serviço/produto especificado.
1.f) Redução de Subsídios e Promoção de Competição Isonômica:
- Criar plano de eliminação de subsídios que distorcem a competição entre diferentes fontes, criam efeitos em cascata através de subsídios cruzados secundários e incidência de impostos e oneram a economia. Não utilizar subsídios ou reservas de mercado para resolver problemas distorções causadas por excesso de subsídios (ver [Street Fevereiro 2025]).
- Promover os ajustes de mercado de forma a garantir a remuneração dos serviços prestados (ver [Street Março 2025]).
- Fomentar a implementação de programas e incentivos destinados à redução das barreiras na transição de trabalhadores entre diferentes mercados e indústrias.
- Grantir que todas as tecnologias e agentes possam disputar no mercado por produtos e serviços bem definidos. Incluindo os consumidores da alta e baixa tensão (ver [Street Março 2025]).
1.g) Definição clara e objetiva de projetos que reduzam emissões:
- Definir posicionamento estratégico governamental através de política energética com posicionamento firme sobre a condução da transição energética. Definir os programas de incentivos, suas frentes de trabalho, fases, ritos de acompanhamento e mecanismos de faseout com visão de longo prazo e compromisso com o realismo e sustentabilidade do programa.
- Definir e atualizar de maneira transparente os critérios de avaliação para se classificar projetos e processos como “limpos”. Criar matriz de redução de emissões, poluição e contaminação.
- Dentro do plano de transição energética, criar incentivos e metas de redução de emissões e descontaminação para canalizar o fluxo financeiro de investidores e empresas interessadas transicionar sua cadeia produtiva e de consumo para projetos e recursos limpos.
- Criar programas de incentivos para as diversas camadas de consumo energético migrarem para camadas mais limpas.
2. Liberdade de Escolha do Consumidor
Um dos principais pilares da justiça é a liberdade. Portanto, a justiça energética só será possível em um contexto em que todos os consumidores tenham total liberdade para escolher seus fornecedores de energia. Esse pilar é crucial para promover uma competição justa entre a geração centralizada e a distribuída, tema central para uma equilibrada e sustentável expansão da geração. Neste contexto, a todos deve ser facultado o direito de escolher o seu fornecedor de energia elétrica ou de produzi-la de forma independente. Não obstante, o exercício desta faculdade não deve deixar custos para os demais; devemos observar sempre as causas dos custos no momento de aloca-los. E em um ambiente com o sinal econômico correto e competição isonômica, o planejamento passa a apoiar o mercado na identificação das necessidades de atributos sistêmicos e pode ser utilizado para recuperar nossa governança energética. A verdadeira competição que beneficia o consumidor é no preço de cada serviço prestado e não para escapar de alocações equivocadas de custos e subsídios.
Na situação atual, todos os subsídios e compensações de ineficienências regulatórias ou operativas são levadas para a tarifa final dos consumidores. Os consumidores residenciais são os que mais sofrem com essas distorções. Neste contexto, criamos uma grande contradição, um sistema que produz e transmite a preços baixos, mas aloca ao consumidor mais vulnerável, o residencial, a tarifa mais cara dentre todos os consumidores. Essa bolha tarifária despertou uma ampla migração por parte dos grandes e médios consumidores para o ambiente livre para fugirem de tarifas ineficientes e oneradas por subsídios que já não deveriam mais existir. Na mesma esteira, o consumidor residencial, impossibilitado de realizar a mesma migração, passou a financiar um novo mercado paralelo de alocação de créditos da geração distribuída (GD) (ver [Street 19/06/24] para mais detalhes). Como este mercado também contém subsídios cruzados, transferindo a conta do transporte e uso da rede aos demais, o as margens geradas incentivaram um crescimento exponencial da GD, agravando a situação dos demais consumidores e gerando graves problemas nas redes de distribuição.
Além disso, o conjunto de subsídios conferidos à GD ofuscam os sinais locacionais e o serviço prestado pela rede de distribuição aos consumidores que injetam o excesso de geração solar durante o dia e retiram durante a noite. Por fim, o sistema que mantém debaixo do guarda-chuva regulado da distribuidora o serviço de comercialização da energia juntamente com o serviço de transporte (fio) produz um agravamento da situação. Isso ocorre porque à medida que os limites de migração são reduzidos, os consumidores que migram para o ambiente livre deixam os seus antigos fornecedores no mercado regulado e financiam novos empreendimentos de geração no mercado livre desnecessariamente. E assim, à base de muitos subsídios e um marco regulatório inadequado à nova realidade do setor, foi criada a maior sobre oferta de geração dos últimos anos.
É importante mencionar que a implementação das mudanças regulatórias propostas nesse documento, principalmente as que envolvem cortes de subsídios, é tarefa complexa do ponto de vista político e que necessita um novo pacto setorial. Não obstante, a abertura de mercado tem um grande apelo e ressoa politicamente, pois não existe ideia mais comovente e justa do que a da liberdade de escolha. Como a implementação da abertura de mercado implica em uma grande discussão setorial, que necessariamente falará sobre redistribuição de subsídios e contas a pagar, torna-se oportuno que este seja o momento para o novo pacto setorial. Neste novo pacto, as mudanças regulatórias serão trazidas como o caminho pelo qual a abertura de mercado poderá se dar de forma sustentável. Destacam-se as seguintes iniciativas neste âmbito:
2.a) Definição da governança, agenda e implementação do processo de abertura do mercado
- Incluir o tema e a agenda na política de governo e garantir a discussão técnica, blindando as decisões e pauta da possibilidade de viés unilateral e não técnico.
- Todas as decisões devem ser fundamentadas tecnicamente, balizadas contra benchmarks relevantes, ouvidas e chanceladas por banca isenta de especialistas nacionais e internacionais através de audiências públicas e ampla discussão com a sociedade, academia e indústria.
- O processo deve ser liderado pelo MME, que deve definir os comitês responsáveis, grupos de trabalho, metodologia de acompanhamento e uma agenda e cronograma públicos.
- Deve ser garantido o protagonismo das associações técnicas que representam os consumidores residenciais e a participação de pessoas com grande peso e conhecimento técnico, garantindo ampla diversidade e representatividade.
- Definir prazos razoáveis, limitados a no máximo 4 anos, e cronograma faseado de abertura e implementação das novas diretrizes.
- Utilizar como ponto de partida o conjunto de propostas técnicas elaboradas na Consulta CP33, sua forma de execução e governança e, sobretudo, as lições aprendidas nesse processo.
2.b) Mercado de varejo aberto, transparente e competitivo
- Implementar o conceito de "open energy", garantindo a propriedade e os benefícios dos dados para todos. Criar protocolos para o armazenamento, acesso e proteção dos dados.
- Criação de certificados online para os mais diversos propósitos de interesse do consumidor e produtor independente (desde os mais básicos, como qualidade de pagamento, até outros mais sofisticados, como qualidade da resposta da demanda, fornecimento em caso de geração distribuída (GD), tipo de consumo, etc.).
- Criação de certificados online auditáveis e transparentes para os provedores de serviço. Garantir que tanto os fornecedores quanto seus produtos sejam avaliados com base em métricas objetivas e úteis para auxiliar a decisão dos consumidores.
- Estabelecimento de um conjunto mínimo de regras para o lançamento de novos produtos de fornecimento (contratos de tarifa). Garantir que o consumidor tenha em seu contrato exemplos claros de consumo e geração, que expliquem as diferenças, os prós e os contras do produto em relação ao modelo básico de tarifa de referência. Com base no conceito de "open energy", os fornecedores poderão apresentar comparativos utilizando os próprios dados do cliente, explorando tanto os benefícios de novas tarifas quanto de novos programas, como a resposta da demanda.
- Criação do fornecedor de última instância (FUI) para assegurar a continuidade do fornecimento aos consumidores em casos emergenciais, como insolvência ou outros problemas que impeçam o fornecedor de garantir a continuidade do serviço. O FUI também deve ser utilizado para garantir transições suaves a consumidores vulneráveis, que não conseguem se adaptar a mudanças regulatórias ou de mercado. As regras do FUI devem ser cuidadosamente estruturadas para desestimular tentativas de arbitragem.
Referências
[Street Março 2025] "Em busca da flexibilidade perdida", [MegaWhat] MegaWhat, 07/03/2025.
[Street Fevereiro 2025] "A Saga da Expansão por Subsídios no Setor Elétrico" [Valor Econômico], Valor Econômico, 14/02/2025. [PDF do manuscrito]
[Joaquim 2025] J. D. Garcia, A. Street and M. V. Pereira, "Long-Term Hydrothermal Bid-Based Market Simulator," in IEEE Transactions on Energy Markets, Policy and Regulation, doi: 10.1109/TEMPR.2025.3537665. https://www.lamps.ind.puc-rio.br/publicacao/hydro_market_simulator/
[LAMPS PUC-Rio 2022] Alexandre Street, “Reflexões sobre a governança dos modelos do setor elétrico e seus dados” em http://www.lamps.ind.puc-rio.br/noticia/modelingrisk/. Veja também o conjunto de artigos e ocorrências sobre as mudanças de governança dos modelos: https://www.lamps.ind.puc-rio.br/noticia/modelgovernance/
[Muñoz 2021] Muñoz, Francisco D., Carlos Suazo-Martínez, Eduardo Pereira, and Rodrigo Moreno. "Electricity market design for low-carbon and flexible systems: Room for improvement in Chile." Energy Policy 148 (2021): 111997.
[Ribeiro 2023] Ribeiro, Luíza, Alexandre Street, Davi Valladão, Ana Carolina Freire, and Luiz Barroso. "Technical and economical aspects of wholesale electricity markets: An international comparison and main contributions for improvements in Brazil." Electric Power Systems Research 220 (2023).
[Moreira 2017] A. Moreira, D. Pozo, A. Street and E. Sauma, "Reliable Renewable Generation and Transmission Expansion Planning: Co-Optimizing System's Resources for Meeting Renewable Targets," IEEE TPWRS, 2017.
[Velloso 2020] A. Velloso, A. Street, D. Pozo, J. M. Arroyo and N. G. Cobos, "Two-Stage Robust Unit Commitment for Co-Optimized Electricity Markets: An Adaptive Data-Driven Approach for Scenario-Based Uncertainty Sets," IEEE TSE, 2020.
[Street 23/04/24] "Repensando a gestão energética e o papel das fontes", Valor Econômico – (23 de abril de 2024).
[Street 19/06/24] "Revolução no varejo elétrico desafia regulação", Valor Econômico – (19 de junho de 2024).